segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Incolor

Já posso morrer. Vivi um grande amor, amei, fui amado, tive filhos, sonhei, sofri, chorei. Já posso morrer, a morte não me assusta.

Não morri naquele carro porque não era a minha hora, prometi a mim mesma que a partir daquela noite sozinha ia ser feliz todos os dias da minha vida. Rezei a Deus, pedi-Lhe que me deixasse ficar por cá, mais uns tempos, mais umas vidas.
Queria, naquela noite, poder fazer as minhas malas, arrumar o meu quarto, compilar as fotografias de Salamanca, ir para a praia no dia seguinte. Nada de megalómano, nada de complicado. Nem livro, nem árvore, nem filho.

Queria só que o corpo me obedecesse, que as dores se consolassem com a medicação, que o sono não viesse, queria respirar com calma. Inspira, expira. Inspira, expira.

No dia em que vim para casa prometi a mim mesma que queria mais, que ia ser mais, que ia ter mais. Mais tudo. A morte andou por aqui a pairar, não tive medo dela, mas também não a encarei. A morte assusta-me.

Está por publicar o livro, por plantar uma árvore, por nascer um filho, por viver um grande amor.

Está por vir a partilha de uma vida, de uma cama, de um sonho. Uma escova de dentes muitos anos ao lado da minha, uma fotografia repetida todos os Natais, uma data especial festejada com champagne e morangos. Está por vir o dia em que ele chegará até mim sem medos, sem resistências, sem segredos, em que saberá o truque das pipocas, o truque do café, o truque das costas, o truque do pequeno almoço, o truque do acordar, o truque da água das pedras. O dia em que a máquina da roupa vai lavar boxers e t-shirts ranhosas, que a aparelhagem vai tocar músicas de outra vida, que a outra chave é dele. O dia em que a cama terá dois cheiros num só.
Quando esse dia chegar, eu saberei com mais certeza ainda que o agora não é nada. Que a prata não vale o mesmo que o ouro, e que o incolor não é nada.

Ando há demasiado tempo a ser incolor. Hoje vesti-me de preto, saí à rua de cara lavada e desgostos à perna, arrastei-me pelos corredores com outras gentes, e pareceu-me que só eu não tinha cor. Eu prometi a mim mesma que queria mais. Eu devo a mim mesma mais. Eu não posso adormecer e pernoitar outra vez no mundo do mediano. Eu quero mais.

Não gosto de ser incolor.

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