e agora?
eu parti o pescoço, ele colou torto, casei-me com as dores numa cerimónia muito lindinha, casamento é para a vida, claro está, a minha vida ganhou novos sabores, novas cores e depois? o que é que eu faço com estes novos sabores e com estas novas cores?
ando a ler, ou a tentar ler, o livro que o António Feio deixou escrito. a tentar ler porque volta e meia sinto um nó enorme na garganta com as palavras e com os sentimentos. não me quero, nem me posso, comparar ao grande artista, mas reconheço nas suas palavras o que muitas pessoas em situação limite também devem reconhecer.
se a morte esteve a espreitar para mim nas primeiras horas, eu não a vi. eu não a senti. guardo as palavras da senhora minha Avó na entrevista, "ela estava serena, transmitia-nos calma". não me lembro de estar serena, mas calma lembro-me. estava estupidamente calma para quem tinha a vida virada de pernas para o ar.
numa das passagens do livro, o médico que acompanhou o António fala na serenidade da morte. na tranquilidade da morte.
serenidade e tranquilidade da morte.
eu quero morrer serena e tranquila, de preferência sem dor e sem dar trabalho. o António diz que lhe custava a dependência, sobretudo para ir à casa-de-banho. eu percebo-o, eu percebo-o e assino por baixo as suas palavras. para mim, pior que a ajuda para ir à casa-de-banho era o próprio banho. no hospital foi traumatizante, a cabeça abandona o corpo e limita-se a não pensar em nada. em casa foi doloroso, em pé, nua, lavada com uma esponja húmida, seca com uma toalha pequenina, todos os dias o mesmo ritual, de frente para o espelho, a ver o que a vida me tinha feito. doeu. mais tarde já conseguia entrar na banheira, tinha o banquinho do deficiente, continuava a não saber a banho. durante muitos meses o banho não soube a banho. ainda hoje, volta e meia, não sabe a banho - o banco está lá, em dias de mais dores ou mais cansaço é utilizado. nesses dias tento nem pensar que preciso dele outra vez.
esta lição eu aprendi. aprendi a não pensar muito no que tinha que viver todos os dias para poder ter a dignidade do meu lado. talvez tenha sido a maneira mais fácil para mim de encarar o dia-a-dia.
é verdade, as cores têm mais cor e os sabores são mais apurados, a felicidade vem em pacotinhos pequeninos, as vitórias são diárias, os amigos ganham uma dimensão sobrenatural, a família atinge os limites ilimitados de importância, as ruas voltam a ser novas e há um mundo novo.
ontem fui ao teatro, precisamente ver a peça que o António Feio estava a encenar na altura em que morreu. fui ao teatro e eu sei que ele lá estava, a ver a peça que idealizou, eu senti-o e disse-lhe: "António, eu não deixo nada por fazer,nem nada por dizer, já aprendi a lição. Obrigada António, por me deixares ler o teu livro e me deixares sentir as tuas palavras."
Apanhados na Rede, de Terça a Sábado às 21.30h e Domingos às 16.30h no Auditório dos Oceanos, Casino de Lisboa. Bilhetes de 18€ a 22€. Duração de 2h30 com intervalo.
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