sexta-feira, 11 de setembro de 2009

nada

_ Que vais fazer amanhã, Maria?

_ Nada. E depois de amanhã também não vou fazer nada, e depois de depois de amanhã vou continuar sem fazer nada.


Terão sido demasiadas as vezes que a minha Mãe me perguntou ao longo da vida o que eu vou fazer amanhã, o meu amanhã tinha sempre qualquer coisa. Podia ser um qualquer coisa pouco válido para a resposta, mas era um qualquer coisa que me fazia existir.

O tempo passa, devagar, demasiado devagar para quem vive de viver. E neste meu caminho que é mais solitário do que penso o meu nada é tudo.

O meu nada de hoje foi um nada um bocadinho mais preenchido que o nada de ontem. Este meu nada que exaspera mais que do que conforta às vezes enche-me de tristeza. Não minto, não vos minto - a alegria de estar viva às vezes é derrotada pela vontade de acordar e conseguir levantar-me sozinha, tomar banho sozinha, arranjar o pequeno almoço sozinha, escolher uma roupa giraça, calçar aquelas sandálias que ainda não estreei e sair à rua. Ligar às meninas e ir bater perna para o Chiado, um café na Brasileira só porque é dia de festa, um jantar combinado à última da hora no Super Mário, uns copos tremidos no Bairro, uma descida até uma discoteca da moda... uma ressaca no dia seguinte.

Aquela liberdade de ir aonde as pernas querem sem olhar para trás, a vida toda à frente, um medo que não existe porque não vive, uma eternidade que é real porque ninguém a colocou à prova.

Cedo demais.
Cedo demais.
E ninguém para apontar o dedo, para ser bode expiatório de uma raiva que carregarei para o resto da vida.
Quem foi que me atirou para uma ribanceira e me mostrou que as pernas não vão onde eu quero mas sim onde podem? Quem foi que me mostrou que a vida é frágil? Quem é que colocou à prova a minha eternidade e mostrou aos poucos 21 anos que a vida acaba quando menos se espera?

Cedo demais. Eu tinha em mim a inconsciente alegria de não saber que amanhã pode ser tarde demais, que amanhã pode não ser o dia. Eu vivia bem, eu era uma sorridente e esperançosa, uma Princesa pouco mulher e demasiado menina, eu era eu e ninguém tinha que me atirar para uma cama de hospital.

E eu estou viva. A meio caminho da primeira etapa. E nesta alegria de estar viva e de (ainda) ter tempo finito para fazer tudo aquilo que não fiz até ao dia do acidente, há também um espaço para me sentir triste porque hoje, tal como ontem, e anteontem, e antes de anteontem eu não fiz nada do que era suposto.

Não me levantei sozinha, não me arranjei sozinha, não saí de casa e não fui à minha rotina de menina quase mulher. Não andei pelas ruas do mundo a sorrir à minha eterna vida, não me apaixonei pela brisa na minha cara, não me emocionei com o pôr-do-sol, não partilhei um sorriso com o senhor do comboio, não beijei a areia num mergulho refrescante, não bebi café enquanto folheava o jornal, não troquei olhares malandros com a brasa do bar, não jantei fora com elas, não me vou deitar com ideias de ir para a praia amanhã.

No fim, só me posso vangloriar por me ter levantado e ter tido a ajuda da minha Mãe para me arranjar, ter dado a volta ao quarteirão, ter inspirado a brisa do fim de mais um dia, ter partilhado um sorriso envergonhado com as pessoas que me olham a medo, ter bebido um descafeínado no café da esquina, ter jantado em família e deitar-me com ideias de que amanhã este meu fim e este meu só é um nada que me salva.

2 comentários:

  1. Se pensarmos que as suas pernas não a levam (ainda) aonde quer, mas aonde podem... e não aonde lhe disseram que NÃO podia mais ir...
    Se pensarmos que a sua "cabecinha pensadora" ficou intacta e os pensamentos lhe ocorrem à média de 1000 por segundo...
    Se pensarmos que pode ler, escrever, conversar, sorrir, rir de si mesma e com os outros, que tem uma Mãe maravilhosa, que a leva a passear ao fim da tarde e uma família numerosa que se reveza em mimos e cuidados...
    Se pensarmos que a vida dá muitas voltas e nada acontece por acaso...
    Se pensarmos que o tempo que nos cabe não cabe em nenhum dos meus múltiplos relógios e não se mede em horas, dias, meses... nem se subdivide em gramaticais Passado/Presente/Futuro...
    Se pensarmos que a Vida é sempre "outra coisa" diferente...
    Minha querida Maricotitas!
    Ganhou o direito de dispor da sua Vida e de a encaminhar pelos passos certos que vai dar pelo Mundo dos Sonhos e das Realidades que aprenderá a aproveitar, com a sofreguidão de quem já sabe o que quer...
    Deus deu-lhe um tempo para reflectir...
    Depois... Mãos à Obra, que Ele também só teve 6 dias e ao 7º descansou!
    Beijocas
    Conceição

    ResponderEliminar
  2. ... e faz-se tanta coisa, quando "não se faz NADA"...

    ResponderEliminar